Escrevendo errado por linhas tortas
O governo federal tem anunciado um pacote de medidas que penalizam alguns setores da sociedade, acompanhadas de um salvo-conduto para vários outros. Sob o pretexto de se perseguir o desejado, imprescindível e urgente equilíbrio fiscal das contas públicas, corremos o risco de abraçar soluções equivocadas que cobrarão sua fatura mais cedo que tarde. Adiamento de reajustes, aumento da contribuição previdenciária e juniorização das carreiras típicas de Estado, como as de regulação e fiscalização do mercado de capitais, não parecem estar em linha com a necessidade já identificada de se desenvolver o mercado de capitais brasileiro.
Recorde-se que a erosão das contas públicas que experimentamos hoje é fruto de decisões equivocadas de outrora. Não podemos permitir que a pretensa solução de um problema crie outros ainda maiores. Causa espanto o avanço anunciado sobre atividades típicas estatais de controle e fiscalização, enquanto se discute, na sala ao lado, a criação de um fundo especial de financiamento da “democracia” (FFD), com valor inicial de 3,6 bilhões de reais, além do já existente fundo partidário.
É obsceno o uso de bilhões de reais em recursos públicos para compra de parlamentares por meio da liberação de emendas negociadas no balcão da desonra. É imoral a renúncia de receitas com a implementação de programas de perdão de sonegadores, que, não por coincidência, são também grandes financiadores da nossa política. E olhe que nem chegamos a mencionar o ralo prosaico da corrupção, que tem sugado nossos melhores esforços desde que as primeiras caravelas aportaram na Ilha de Vera Cruz.
Além de um double standard observado entre o tratamento imposto a servidores públicos federais e o deferido a agentes políticos, o regime concedido aos poderes judiciário e legislativo também é bem distinto do “pacote de maldades” que o governo tenta destapar contra os servidores do executivo federal.
Recentemente temos acompanhado uma grande discussão sobre o papel dos órgãos de controle e fiscalização em casos de alta visibilidade como JBS, Grupo X e Petrobrás. Não faltam aqueles que perguntam — e com razão! — onde estava a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) enquanto ilícitos em série eram praticados. Olvidam-se do subdimensionamento da autarquia que tem sob sua esfera de competência regular, supervisionar, fiscalizar e sancionar um imenso guarda-chuva que inclui companhias abertas, bolsas de valores, corretoras de valores mobiliários, fundos, empresas de auditoria e um extenso etcétera, além de promover educação financeira e o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro.
Mesmo quem não é especialista pode suspeitar que os 530 servidores que trabalham na CVM (incluindo cargos em comissão), parecem insuficientes quando vemos que o Instituto Brasileiro de Museus tem 602 servidores, o Banco Central tem 3.917, a Funai tem 2.339, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem 1.057, para ficar em poucos exemplos extraídos do portal da transparência do poder executivo federal.
Ademais, não custa recordar que as atividades típicas de Estado não encontram paralelo no setor privado. A regulação e a fiscalização do mercado de capitais são exclusivamente estatais. No entanto, o que mais poderia se aproximar da atividade de um regulador do mercado de capitais seriam as atividades exercidas pelos regulados. Via de regra, esses quadros são preenchidos com pessoal muito bem capacitado e remunerado, não com economistas recém-formados.
Defendemos, sim, um ajuste sério e profundo nas contas públicas. O governo tem o dever de cortar o desperdício, a ineficiência, a inépcia e a corrupção. Mas, ao contrário, propõe justamente defraudar as estruturas de controle capazes de levar a efeito essa tarefa. Isso é simplesmente errado.